Nesta quinta-feira (18), a Academia Nacional de Medicina abriu suas portas para discutir um tema ainda pouco conhecido fora dos círculos científicos: as doenças autoinflamatórias. Organizada pelo acadêmico Jorge Kalil, a sessão reuniu especialistas do Brasil e do exterior para lançar luz sobre um campo em rápida transformação, que vai da compreensão genética até as novas fronteiras da terapia celular e da edição gênica.
Logo na abertura, a presidente da ANM, Eliete Bouskela, destacou a urgência de ampliar o conhecimento sobre essas enfermidades, frequentemente confundidas com infecções ou doenças autoimunes. E foi justamente nesse ponto que Kalil trouxe a primeira chave de entendimento: ao contrário das doenças autoimunes, em que o corpo ataca a si mesmo, nas autoinflamatórias o problema está no sistema imunológico inato, que, por falhas genéticas, passa a disparar processos inflamatórios sem motivo aparente, provocando febres recorrentes, inflamações e até danos em órgãos.
O imunologista italiano Marco Gattorno, da Universidade de Gênova, aprofundou o debate ao falar sobre as vasculites monogênicas, nas quais mutações específicas levam à inflamação dos vasos sanguíneos. O alerta maior, segundo ele, é para a necessidade de diagnóstico precoce em crianças, onde os sinais muitas vezes passam despercebidos.
Entre os casos clínicos em destaque, esteve a deficiência de ADA2, uma condição rara que pode se manifestar como poliarterite nodosa. Medicamentos anti-TNF já vêm mostrando bons resultados, mas, nos quadros mais graves, a única saída pode ser o transplante de medula óssea. Outro exemplo veio da síndrome de IPEX, provocada por mutações no gene FOXP3. Pesquisadores de Stanford, nos Estados Unidos, testam uma abordagem inovadora usando células reguladoras do próprio paciente, com resultados promissores e vislumbram, no futuro, a possibilidade de soluções definitivas via CRISPR-Cas9.
Apesar do entusiasmo com as perspectivas, um ponto sensível permeou toda a reunião: a dificuldade de diagnóstico no Brasil. Testes genéticos e enzimáticos, fundamentais para identificar corretamente essas doenças, ainda são de acesso limitado no país. Casos raros de vasculite pediátrica apresentados durante a sessão reforçaram a necessidade de diferenciar essas enfermidades de outros quadros inflamatórios mais comuns.
Nesse cenário, o imunologista Leonardo Oliveira Mendonça, da Faculdade de Medicina da USP/UNISA, trouxe uma boa notícia: o projeto de criação de um Centro Nacional para Erros Inatos da Imunidade e Imunodisregulação. O objetivo é sequenciar o DNA de três mil indivíduos com suspeita de doenças autoinflamatórias, mais de 1.200 amostras já foram analisadas. O centro também deve abrigar um biorepositório nacional e investir em campanhas de conscientização junto aos profissionais de saúde.
A presença online da Prof. Dr. Ivona Aksentijevich e da Prof. Dr. Rosa Bachetta (National Institutes of Health e Stanford University, respectivamente), reforçou a dimensão global do esforço para compreender essas doenças. Para elas, a cooperação internacional é a única forma de acelerar descobertas e transformar diagnósticos em tratamentos efetivos.
O encontro terminou com a percepção de que o campo das doenças autoinflamatórias ainda está em construção, mas avança rapidamente. Para Kalil, o desafio imediato é sensibilizar médicos brasileiros para que reconheçam esses quadros e encaminhem pacientes a centros especializados. “Essas doenças não são apenas raridades científicas; elas representam vidas que podem ser transformadas com a informação certa, no momento certo”, resumiu o acadêmico.