Em um auditório atento, a violência, quase sempre tratada como tema policial, foi analisada sob uma nova lente: a da saúde pública. A Academia Nacional de Medicina promoveu o simpósio “Saúde e Violência” nesta quinta-feira (02), reunindo médicos, juristas e autoridades para um debate sobre a realidade brasileira em temas que vão da violência contra adolescentes à violência obstétrica e o feminicídio.
O encontro foi conduzido pela presidente da ANM, acadêmica Eliete Bouskela, pelos acadêmicos José Augusto da Silva Messias e Jorge Fonte de Rezende Filho, e pela deputada federal Soraya Santos, que abriu a sessão lembrando que a violência “é uma ferida aberta que atravessa todas as idades e classes sociais, e precisa ser tratada com o mesmo rigor que qualquer outra doença”.
O acadêmico José Augusto da Silva Messias, especialista em saúde do adolescente, trouxe dados que deixaram os presentes consternados: 70% das internações hospitalares de adolescentes no país são causadas por fatores externos, incluindo agressões. “Estamos falando de jovens que deveriam estar na escola, mas estão nos hospitais. A violência virou uma epidemia silenciosa”, afirmou.
Ele defendeu a importância da notificação compulsória de casos de violência e destacou o papel dos profissionais de saúde como agentes de prevenção. Também citou experiências bem-sucedidas, como o Projeto Caminho Melhor Jovem, que já beneficiou mais de 14 mil adolescentes no Rio de Janeiro.
A deputada Soraya Santos reforçou o alerta. “É preciso transformar estatísticas em políticas públicas reais. O Brasil precisa cuidar dos seus jovens antes que a violência os alcance”, disse, anunciando a intenção de criar ações específicas no Dia Nacional das Adolescentes.
A segunda parte do simpósio trouxe à tona um tema delicado: a violência obstétrica. O acadêmico Jorge Fonte de Rezende Filho explicou que esse tipo de abuso pode ocorrer em qualquer fase da gestação, do parto ao puerpério, e vai desde a falta de consentimento em procedimentos até o desrespeito emocional. “Nenhuma mulher deve sair de uma maternidade com trauma — o parto deve ser lembrado como um momento de vida, não de dor”, afirmou.
A Secretária Estadual de Saúde, Dra. Cláudia Mello, apresentou o Plano Estadual de Combate à Violência do Rio de Janeiro, previsto para lançamento em novembro. O projeto prevê salas de escuta em hospitais, capacitação de profissionais e protocolos de acolhimento. “Queremos que a mulher seja ouvida e acolhida, não silenciada”, ressaltou.
A ANM também anunciou que contribuirá tecnicamente para um projeto de lei sobre os direitos da mulher gestante, atualmente em elaboração no Congresso Nacional.
Encerrando as discussões, foram apresentados dados que chocam: dez mulheres são mortas todos os dias no Brasil por razões de gênero, e há mais de 1,3 milhão de processos de violência doméstica em andamento.
A conselheira Daiane Lira, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), lembrou que o enfrentamento dessa realidade vai além da punição. “A violência contra a mulher é também um sintoma cultural, e o tratamento começa pela educação e pela escuta”, observou.
Ao final, ficou o consenso: combater a violência exige integração entre ciência, políticas públicas e sensibilidade humana. A ANM se comprometeu a apoiar estudos sobre populações carcerárias e a reforçar campanhas de notificação de casos de violência em unidades de saúde. A Secretaria de Saúde, por sua vez, definirá referências oficiais para o aborto legal e ampliará o treinamento de equipes hospitalares.
Encerrando o encontro, a presidente Eliete Bouskela resumiu o espírito do dia:
“O médico que escuta uma vítima de violência está tratando mais do que feridas físicas — está ajudando a curar uma sociedade adoecida.”
O sessão mostrou que ciência e empatia podem, e devem, caminhar juntas. Ao reunir especialistas de diferentes áreas, a Academia Nacional de Medicina transformou um tema doloroso em reflexão e proposta, abrindo caminhos para que a saúde ajude a romper o ciclo da violência no Brasil.