FÍGADO E OBESIDADE

19/05/2016

A obesidade é um distúrbio do estado nutricional, caracterizado como o acúmulo de gordura (tecido adiposo) com consequente elevação da massa corporal decorrente do desequilíbrio na ingestão calórica e o gasto energético. A obesidade é um dos maiores problemas de saúde pública da atualidade e está relacionada a fatores metabólicos, genéticos, sedentarismo, hábitos alimentares, condições socioeconômicas e comportamentais. A obesidade abre portas para diversas complicações como: hipertensão arterial sistêmica, alterações dos níveis séricos de lipídios e glicemia, doenças cardiovasculares, aumento do risco de mortalidade e possui íntima relação com a prevalência do fígado gorduroso ou doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA).

A DHGNA é a doença hepática deste século, em paralelo com a obesidade, resistência à insulina e síndrome metabólica. A DHGNA é definida como um acúmulo de gordura no fígado superior a 5% da massa hepática. No exame ao microscópio as células hepáticas (hepatócitos) exibem acúmulo de gordura, ou esteatose, sem estar associado ao consumo excessivo de álcool. A DHGNA é caracterizada por um espectro de lesões variando de esteatose hepática branda sem inflamação ou fibrose até esteato-hepatite não alcoólica (EHNA), que envolve mudanças inflamatórias hepáticas e morte de hepatócitos (apoptose) que conduzem à lesão hepática e fibrose. A progressão da EHNA resulta em cirrose hepática e carcinoma hepatocelular.

Histologicamente, a esteatose hepática é classificada em dois tipos: macrovesicular e microvesicular. Na esteatose macrovesicular uma grande e única gotícula de gordura, ou gotículas menores e bem definidas, ocupam o citoplasma dos hepatócitos, que desloca o núcleo para a periferia. Na esteatose microvesicular, o citoplasma do hepatócito é preenchido com pequenas gotículas lipídicas e o núcleo está localizado centralmente na célula.

A DHGNA, na maioria dos casos, é assintomática. Em seu estágio inicial pode ocorrer em todas as faixas etárias e sua prevalência se eleva com o aumento da massa corporal. O “fígado gorduroso” é encontrado em 10-15% dos indivíduos com peso normal, e em aproximadamente 70% dos indivíduos obesos (onde 20-25% apresentam EHNA).

A DHGNA caracteriza-se por um acúmulo excessivo de ácidos graxos livres no fígado, onde eles são reesterificados com glicerol para produzir triglicérides. Esta anormalidade lipídica leva à condição de resistência à insulina por alterações nos receptores de insulina de tecidos periféricos (músculo, tecido adiposo). Tem sido proposto, a hipótese dos “dois hits” para descrever a patogênese da DHGNA, onde o primeiro hit surge através da resistência a insulina, contribuindo para a instalação da esteatose hepática, e o segundo hit tem início com o quadro de estresse oxidativo, resultando em inflamação, fibrose e necrose (morte de células).

A distribuição corporal do excesso de gordura é um ponto importante, pois com o excesso de gordura visceral aumenta o risco de esteatose hepática. A “quebra” da gordura (lipólise do tecido adiposo) fornece cerca de 60% dos ácidos graxos usados para a síntese de triglicérides hepáticos. O restante dos ácidos graxos hepáticos é proveniente da “formação de gordura” (lipogênese de novo) dentro do fígado (25%), e do consumo alimentar (15%). Os ácidos graxos não esterificados proveniente do tecido adiposo são transportados através da corrente sanguínea e absorvidos pelo fígado, com deposição nos hepatócitos, justificando a associação entre a obesidade e a maior probabilidade de desenvolver esteatose hepática.

O excesso de gordura no fígado resulta em aumento da secreção das lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL) e algumas alterações lipídicas plasmáticas, incluindo hipertrigliceridemia, redução da lipoproteína de alta densidade (HDL, o “bom” colesterol), e aumento da lipoproteína de baixa densidade (LDL, o “mau” colesterol).

O acúmulo de gordura no fígado ativa a transcrição e a liberação de fatores pró- inflamatórios, tais como a interleucina (IL)-6, fator de necrose tumoral (TNF)-alfa, e proteína C-reativa. Concentrações elevadas dessas citocinas pró-inflamatórias circulantes e reduzidas de fatores anti-inflamatórios (adiponectina), conduzem a um estado inflamatório crônico de baixo grau, que é reconhecido como um importante mecanismo de origem da DHGNA.

Quanto ao diagnóstico, a biópsia hepática representa o “padrão ouro”, no entanto é um procedimento invasivo, doloroso e caro. Portanto, não é realizada como exame de rotina em todos os pacientes com DHGNA. Exames de rotina incluem a ressonância magnética, tomografia computadorizada, ultrassom e, mais recentemente, a fibroscopia (com um equipamento chamado fibroscópio).

Em relação aos fatores genéticos, o polimorfismo da PNPLA3 (Patatin-like phospholipase domain-containing 3), foi fortemente associado ao elevado teor de gordura no fígado. Dessa forma, a comunidade científica têm destacado o papel da PNPLA3 no desenvolvimento e na progressão da DHGNA. Atualmente, a variante do gene PNPLA3 é o fator de susceptibilidade mais validado para esteatose, DHGNA, fibrose e carcinoma hepatocelular.

Não existe consenso sobre o tratamento específico e aprovado para a DHGNA, mas certos “alvos” farmacológicos promissores foram recentemente identificados e alguns agentes terapêuticos potenciais são atualmente testados em ensaios clínicos.

As diretrizes para o tratamento da DHGNA se baseiam na identificação e tratamento das condições metabólicas associadas. Os pacientes são orientados a reduzir a obesidade, reduzindo a ingestão de gorduras e carboidratos simples, realizar atividades físicas regulares com o objetivo de reduzir a massa corporal e melhorar o perfil lipídico, promovendo também a redução da resistência à insulina.

O aumento contínuo da obesidade e doenças relacionadas destaca a necessidade de definir estratégias futuras para a DHGNA. É importante ressaltar que um acompanhamento multidisciplinar envolvendo médicos, nutricionistas e educadores físicos, pode aumentar a efetividade do tratamento, uma vez que modificações do estilo de vida são altamente recomendadas. Leitura sugerida: Barbosa-da-Silva et al.. Singular effects of PPAR agonists on nonalcoholic fatty liver disease of diet-induced obese mice. Life Sci 2015;127:73-81.

Esquema do fígado com a sobreposição de três imagens ao microscópio mostrando como são as lesões da esteatose hepática, esteatohepatite e cirrose hepática. Vemos as gotículas de gordura (setas) típicas da esteatose macrovesicular, que evolui com um pouco de fibrose (em vermelho, seta) na esteatohepatite. Finalmente o desarranjo tecidual e maior fibrosse vista na cirrose hepática.

Autores:

Iara Karise dos Santos Mendes

Sandra Barbosa da Silva

Supervisão:

Carlos Alberto Mandarim-de-Lacerda – Membro Titular da Academia Nacional de Medicina

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